Preto & Branco
Já faz um tempo que escrevi sobre este manga [em 2002, penso], mas após ter notícias que ele recebeu um prêmio de melhor publicação japonesa lançada nos Estados Unidos em 2007 [lançado como conseqüência da estréia da adaptação em animação da história, distribuída pela gigante Sony Pictures], além que seu autor [Taiyo Matsumoto] também ser premiado no mesmo ano pelo Japan Media Arts Festival, por seu trabalho em Takemitsu Zamurai; considero que é válido re-visitar esta obra que ainda me intriga pela sua originalidade na arte seqüencial, e pela quantidade de lições que ela ainda pode guardar em seus devaneios.
Preto & Branco [Tekkon Kinkreet, 1998], mais do que nunca, provou para mim, nesses anos correntes, ser um verdadeiro clássico abastardo nem tanto reconhecido pelo grande público por fugir de muitos estereótipos de seu gênero e por tratar de forma surreal o imaginário do espírito urbano contemporâneo [que atormentará o sujeito moderno até o fim dos tempos].
Na obra, Matsumoto [re]inventa uma mitologia das cidades urbanas, atoladas de pessoas, propagandas, medo, lixo e esperanças abortadas. Colando-nos na visão de dois irmãos órfãos: Preto [o demônio violento] e Branco [o inocente]. Eles são garotos de rua que voam entre os prédios, anti-heróis marginalizados e anárquicos. Filhos naturais do próprio ambiente, a Cidade do Tesouro, tomada pela violência e corrupção, que funciona como uma estranha analogia real-fantasiosa da Terra do Nunca, onde as crianças reinam livres para carregarem consigo o espírito do lugar [e da sua época].
Nesse cenário, Preto e Branco regem sem medo sua cidade, roubando-a, alimentado-a, defendo-a com extrema violência [num certo toque de poesia sádica], sendo temidos e protegidos por todos [policiais, Yakuza…]. Vivem pelas próprias regras, como parte do ambiente urbano caótico e desfigurado, até o momento que aos poucos eles percebem que a cidade está mudando, e com ela suas vidas [ameaçadas pelos que pretendem incrementar uma reurbanização a todo custo].
Assim, somos apresentados a uma realidade surreal, anormalmente violenta e bela, contraditória e de contrastes gritantes, carregada de metáforas cotidianas e um sentimento de que, assim como os personagens, estamos perdendo nossas raízes e vivenciamos a ansiedade de encontrar nosso lugar. Preto & Branco é uma obra de qualidades raras, complicadas de delinear sem antes refletir sobre a relação singular dos dois irmãos, Branco com sua visão surreal da vida [um quase poeta/ esquizofrênico] e Preto com sua natureza explosiva, que tenta a todo custo proteger sua cidade e seu irmão.
Quanto a Taiyo Matsumoto, ele é um mangaká único, underground, poético e de características inconfundíveis. Em seus traços tortos e detalhados, Matsumoto deixa explícito sua influencia européia, especialmente de Moebius, o que justificaria o viés surrealista que incrementa suas obras [ele também é fã de Cavaleiro das Trevas, de Frank Miller, algo que ele deixa implícito em alguns momentos de Preto & Branco].
No Brasil, Preto & Branco teve um lançamento tímido em 2001, em três volumes [o primeiro esgotado] pela Conrad, numa época em que mangá no Brasil era sinônimo de olhos grandes, roteiros para enchimento de lingüiça e com fórmulas prontas [típico de obras do “mainstream” japonês]. Eu mesmo comprei a publicação ao acaso, num canto de uma banca de revistas, ainda lacrada, sem ter mínima noção do que aguardava [e sem saber que era uma série, a Conrad pecou em não determinar isso em nenhum momento do livro].
Nunca me arrependi da aquisição desta série, e espero que com o lançamento do anime da obra no Brasil a Conrad pense em relançar Preto & Branco, numa versão encadernada, como aconteceu nos Estados Unidos.